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Muito já se escreveu sobre o trabalho sexual. E se muitos argumentos roçam a demagogia misturando sem pudor e propositadamente o tráfico sexual, a pornografia, a prostituição infantil, a maioria não se coíbe também de vitimizar o trabalhador do sexo.

Esta vitimização começa por uma falácia clara: que o trabalhador do sexo é sempre – ou quase sempre – uma mulher. E aqui começa a misoginia: a “protecção das nossas mulheres” e a moralidade de uma sociedade escondem os maiores crimes da Humanidade. Para além de invisibilizarem o mundo do trabalho sexual Trans e masculino. (Uma busca rápida no Google à palavra “prostituição” sem o adjectivo “masculino” apresenta uma panóplia de imagens de mulheres demonstrando implicitamente a misoginia e o machismo que esta palavra carrega consigo.)

Portanto primeiro, combater o machismo e a reprodução de argumentos machistas. Diz que prostituição é a “venda do corpo das mulheres para satisfazer homens”, como se APENAS a mulher pudesse ser trabalhadora do sexo. Esquece que homens e Trans também se podem prostituir. A prostituição não é exclusividade do género feminino. Segundo equívoco: porquê “venda de corpo”? Estranha forma de se referir a uma relação sexual. O trabalhador do sexo, ao contrário de estar a “vender o seu corpo”, está a prestar uma espécie de serviço de natureza sexual, assim como massagens, cortar cabelos, costurar uma roupa sob medida, pintar uma parede, “ghostwritters”… Nenhum destes profissionais está a ser vilipendiado na sua dignidade humana, nenhum se está a vender, mas tão-somente a realizar um serviço.

Ora, antes de mais explicar: o acto de prostituição, em Portugal, não é crime, nem ilegal. O acto de prostituição é, per se, uma decisão entre variadas outras, dentro de um sistema de exploração capitalista. E, se, há quem prefira trabalhar num callcenter e dar a “boca” ao mercado, fazendo “fellatios” constantes em prol do patronato e das multinacionais, por míseros tostões ao final do mês, haverá também quem prefira dar o cu ou a cona.

Em Portugal, crime é o lenocínio, a organização em bordel, o tráfico sexual, o proxenetismo e a prostituição infantil. Todas elas formas de exploração do corpo de outrém para obtenção de lucro por terceiros. E se, em tempos, por ocasião do referendo do aborto se falava à boca cheia do direito da mulher (da pessoa) sobre o seu corpo, este, pelos vistos, não se aplica ao seu usufruto enquanto instrumento de trabalho, ainda que, seja qual for a profissão, o corpo seja sempre o canal de exploração do patronato. Esta hipocrisia grassa, pois, pelos defensores do pudico, da moral e – claro está – das desgraçadas das vítimas das mulheres com argumentos como: e se fosses ao IEFP e te oferecessem um trabalho como puta – novamente e para não esquecer: o proxenetismo, a organização em bordel, o tráfico e o lenocínio são crime, iria o Estado substituir-se a estes? Não! – eu quero ser escravo, trabalhar de borla – a escravatura é crime, a prostituição não! E, infelizmente, é possível e chama-se “estágio curricular”. É preciso tirar a prostituta do gueto. Nenhuma categoria pode ser privada de direitos laborais.

Posto isto, explicar: se a ideia que combatemos é o trabalho em si, então sim, a profissionalização é um argumento que não fará sentido. No entanto, e face a um mundo onde o capitalismo e o trabalho não foram abolidos, a profissionalização e a organização em classe profissional é uma forma de combater abusos, pré-conceitos e preconceitos. É uma forma de permitir o acesso a cuidados de saúde especializados, a protecção e segurança específica, uma forma de combater as ilegalidades no mundo de exploração sexual (o proxenetismo, o lenocínio, o tráfico e a prostituição infantil) uma vez que a regulamentação e as condições de trabalho estariam definidas na lei. Pode-se argumentar que, mesmo as profissões ditas legais sofrem de abusos e que seria necessário recorrer a um tribunal burguês e a forças policiais abjectas. É um facto diário para milhões de pessoas. Mas é uma utilização do sistema enquanto não arranjamos outro e, até lá, podemos espernear e soltar urros contra um sistema de exploração, mas é preferível a invisibilização e a continuidade do acto de se prostituir sem qualquer protecção? É preferível acreditar que todas as mulheres (pessoas) que se prostituem são mais vítimas de um sistema capitalista que todos os restantes? Isso faz-nos sentir melhor a todos que temos as ditas profissões dignas? (Convenhamos que a a dignidade da pessoa, não passa pelo trabalho que exerce, seja ele ser médica, puta ou lambedora de retretes profissinal.) Talvez. E talvez seja esse mesmo o problema de o trabalho sexual adquirir a sua categoria: a ideia de que a dignidade de uma pessoa passa pela forma como é assalariada destrói os contornos da moralidade de uma sociedade de forma mais explícita, enquanto a exploração capitalista nos dá a “segurança” do respeitinho, da hierarquia e do “self made man” (e não woman, claro está!), permitindo a manutenção do sistema pudico, higiénico, hipócrita, machista e, acima de tudo, o controlo moral do outro.

Destruir a moralidade é destruir o sistema.

E era, mais coisa menos coisa, o que Marx dizia por aqui:

Doutrina Comunista do Casamento:

“Considerando a propriedade privada, na sua geração, o comunismo é na sua forma primitiva a generalização e a abolição da propriedade privada. Em relação a essa abolição, há dois aspectos: de um lado, ele sobrestima o papel e a dominação da propriedade material de um ponto de vista tal que ele quer destruir tudo o que não pode trazer a fortuna e a propriedade privada de todo o mundo; ele quer suprimir pela violência as capacidades particulares, etc. A posse física imediata surge aos seus olhos como o principio único da vida: a forma de atividade do trabalhador não é abolido desse estado, mas estende-se a todos os homens.

A instituição da propriedade privada continua sendo a relação da coletividade no mundo das coisas; e esse movimento que tende opor à propriedade privada a propriedade privada tornada comum, se exprime de uma forma completamente animal, quando opõe ao casamento (que é, evidentemente uma forma de propriedade privada exclusiva) a comunidade das mulheres: quando, por conseguinte, a mulher torna-se uma propriedade coletiva e abjeta. Do mesmo modo que a mulher abandona o casamento pelo reino da prostituição geral, assim também o mundo inteiro da riqueza, isto é, da essência objetivada do homem, passa do estado de casamento exclusivo com a propriedade privada à prostituição geral com a coletividade. A prostituição não é senão uma expressão particular da prostituição geral do operário, e como a prostituição se estende não somente ao prostituido, mas também ao prostituinte (cuja abjeção torna-se ainda maior), o capitalista também está incluído nessa categoria, etc. Esse comunismo que nega em toda parte a personalidade humana, não é senão uma expressão consequente da propriedade privada da qual ela própria é essa negação.

A mulher considerada como presa e como objeto que serve para satisfazer a concupiscência coletiva exprime a degradação infinita do homem quando só existe para si.”

frase-entre-as-que-se-vendem-pela-prostituicao-e-as-que-se-vendem-pelo-casamento-a-unica-diferenca-simone-de-beauvoir-161570

Em resposta a: https://obeissancemorte.wordpress.com/2015/11/04/o-lugar-da-mulher-e-na-fabrica-e-na-familia-um-mergulho-as-profundezas-do-olhar-marxista-sobre-a-prostituicao/

Mas sobretudo a: http://litci.org/pt/lit-qi-e-partidos/opiniao/um-olhar-marxista-sobre-a-prostituicao/

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